No ritmo atual, demoraria cerca de 230 anos para que a pobreza fosse completamente erradicada do planeta. Por outro lado, em até dez anos o mundo deve ter o seu primeiro trilionário — provavelmente, Elon Musk. O cenário de extremos é detalhado pelo mais recente relatório Desigualdade S.A. da Oxfam, divulgado na última segunda-feira (15) em Davos, na Suíça, durante a 54ª reunião anual do Fórum Econômico Mundial.
A década de 2020 tem sido “especialmente difícil” para os mais pobres, destaca o relatório. O documento aponta a pandemia da Covid-19, a escalada de conflitos pelo mundo, a aceleração da crise climática e o aumento do custo de vida como alguns dos fatores que estariam transformando o período em uma “década de divisão”.
A Oxfam explica que a pobreza nos países de renda mais baixa é ainda maior do que era em 2019. Segundo o documento, os preços estão ultrapassando os salários em todo o mundo e centenas de milhões de pessoas “têm dificuldades de fazer com que seus ganhos rendam um pouco mais a cada mês”.
Trata-se de um conjunto de crises, explica Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da organização. A população de todo o planeta foi afetada e os salários não acompanharam a alta no custo de vida. Mesmo o aumento do emprego tem sido muito conduzido pela informalidade.
“A queda do desemprego nos últimos tempos vem acompanhada de menores salários médios, precarização, então esses novos empregos têm se dado às custas de trabalhos informais no passado recente. É um cenário que se repete no planeta todo.” (Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam)
O forte aumento no custo de alimentos e outros bens essenciais que começou em 2021 mudou a realidade das famílias. Marcelo Neri, diretor do FGV Social, afirma que no Brasil a pandemia afetou principalmente a classe média. A população mais rica, por exemplo, conseguiu realocar capital e se proteger dos efeitos da crise sanitária.
“O Brasil tem uma distribuição de renda desigual, mas é uma média parecida com a global, o mundo é muito desigual. Durante a pandemia a gente fez um estudo que mostra que quem mais perdeu foi a classe média. Os mais pobres foram poupados pelo auxílio emergencial, apesar dos problemas de implementação, e os ricos que têm acesso ao capital financeiro conseguem de alguma forma realocar e se defenderam bem.” (Marcelo Neri, diretor da FGV Social)
Empresas lucraram mais
O mundo todo lidou com a escalada da inflação nos últimos anos. No Brasil, por exemplo, o IPCA começou a desacelerar em 2022. Em 2023, encerrou o ano em 4,62%, abaixo do teto da meta.
Mas em 2021, ano mais crítico, a inflação acumulada foi 10,1%. Neri explica aqui a contradição: o Brasil, que é um grande exportador de alimentos, se beneficia com a alta dos preços. Mas a sua população, sobretudo a mais pobre, acaba penalizada. O resultado foi o crescimento da insegurança alimentar no país em 2021.
“Quando a gente olha 2022, isso no Brasil, a taxa de extrema pobreza cai, apesar do efeito da pandemia. Mas a insegurança alimentar chega a 34% em 2022 [segundo pesquisa da FGV Social]. Os preços dos alimentos subiram por conta de vários elementos, é verdade, e a insegurança alimentar atinge seu máximo em 2021, ficando em 36%.” (Marcelo Neri, diretor da FGV Social)
“O forte aumento no custo de alimentos e outros bens essenciais que começou em 2021 passou a ser uma nova realidade para muitas famílias em todo o mundo, que tentam comprar óleo, pão ou farinha sem saber quanto poderão pagar, ou quanta fome elas e seus filhos terão que suportar hoje.” (Oxfam)
Por outro lado, o relatório aponta que com a escalada dos preços, as empresas dos setores de alimentos, energia e medicamentos atingiram lucros recordes. O relatório evidencia que as companhias conseguiram aumentar os lucros no ritmo mais rápido desde 1955.
“O aumento da inflação de alimentos prejudica a população do planeta, mas gera lucros recordes para empresas que trabalham no setor. Destaco o caso da Cargill, que em 2021 teve o maior lucro da sua história [na ocasião], uma empresa de mais de 100 anos. [Houve] O aumento do lucro das empresas petrolíferas, por conta da valorização do valor do barril do petróleo. Isso impacta o custo de vida da maior parte da população.” (Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam)
Ricos ainda mais ricos
Enquanto a renda média da população diminuiu, bilionários ficaram mais ricos. A riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo mais que dobrou (114%) desde 2020, enquanto 60% da humanidade ficou mais pobre. As fortunas deles, somadas, passaram de US$ 405 bilhões (valor corrigido pela inflação) para US$ 869 bilhões entre março de 2020 e o final de novembro de 2023 (em média, juntos, eles ficaram US$ 14 milhões — ou R$ 69 milhões — mais ricos por hora). Veja abaixo quem são:
• Elon Musk, dono da Tesla, SpaceX e X (antigo Twitter), com uma fortuna de US$ 245,5 bilhões.
• Bernard Arnault e família, dono da LVMH, com uma fortuna de US$ 191,3 bilhões.
• Jeff Bezzos, dono da Amazon, com uma fortuna de US$ 167,4 bilhões.
• Larry Ellison, dono da gigante de software Oracle, com uma fortuna de US$ 145,5 bilhões.
• Warren Buffet, dono da Berkshire Hathaway, com uma fortuna de US$ 119,2 bilhões.
Se cada um dos cinco homens mais ricos gastasse um milhão de dólares por dia, eles levariam 476 anos para esgotar toda sua fortuna combinada. Outro dado que evidencia o grau de disparidade é que uma trabalhadora do setor de saúde levaria cerca de 1.200 anos ganhar o que um CEO de uma das 100 maiores empresas da lista da Fortune ganha em média por ano, por exemplo.
A expectativa é que as coisas sigam melhorando para os grupos que detêm a maior parte do capital. A Oxfam prevê que o número de milionários aumente 44% entre agora e 2027. Já o número de pessoas com patrimônio de 50 milhões de dólares ou mais deverá crescer 50% no período.
O mundo deve ter seu primeiro trilionário nos próximos dez anos. Se nada mudar, provavelmente Elon Musk ocupará o posto. Para fins de comparação, o primeiro bilionário da história moderna foi John Davison Rockefeller, fundador da Standard Oil Company, no início do século XX.
Jefferson avalia que é uma previsão bastante crível. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que algumas condicionantes, como a própria pandemia da Covid-19, e a desaceleração global mudariam a dinâmica de concentração de renda. Mas os dados mostram que isso não aconteceu. “Falar [da existência] de um trilionário em 10 anos não é algo de outro mundo. A gente destaca que o Musk multiplicou por 10 a fortuna dele desde 2020. Tinha US$ 20 bilhões, passou para US$ 200 bilhões. É um período muito curto de tempo”, diz.
O número pode parecer contraditório se comparado às previsões para a economia mundial nos próximos anos, que deve desacelerar. O Banco Mundial chegou a divulgar um relatório no início do ano passado fazendo um alerta sobre o que seria uma década “perdida” para a economia para o período de 2022 a 2030.
Jefferson destaca, no entanto, que o aumento de acúmulo de patrimônio por parte dos mais ricos está fortemente ligado à existência dos monopólios. Isso permite que eles estejam imunes aos contextos de crise e menor crescimento médio no planeta.
“Essa busca dessas grandes empresas, de domínio do mercado, é um elemento importante que explica a estratégia de controlar os preços de alguma maneira. Há uma grande concentração de mercado que faz com que eles tenham um poder desproporcional. Diversos fatores [influenciam preços], o fator climático, as guerras, o aumento de frete, os fluxos comerciais, mas, além disso, essa concentração de mercado é proporcionada por essa atuação meio selvagem das grandes empresas, que dá um poder ainda maior a elas.” (Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam)
A Oxfam avalia que cabe ao poder público intervir na máquina corporativa para reduzir as desigualdades. “Um mundo mais justo e menos desigual é possível se os governos redesenharem os mercados para serem mais justos e livres do controle de bilionários. Se quebrarem monopólios, derem mais poder aos trabalhadores, tributarem as corporações e os super-ricos e, principalmente, investirem em uma nova era de bens e serviços públicos”.
Por Alexa Meirelles/UOL
Foto: Gonzalo Fuentes/Reuters; Getty Images; Rick Wilking/Reuters; Wikimedia Commons; Theo Wargo/ Getty Images
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