A Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia, acata apenas parte do pedido do governo da África do Sul e determina que Israel tome “todas as medidas” para impedir que um genocídio ocorra contra palestinos na Faixa de Gaza. A decisão exige que Israel permita que a ajuda humanitária entre na região, que a destruição de casas e infraestrutura civil seja evitada e que ataques contra a população não ocorram.

Mas os juízes frustraram um dos aspectos centrais do pedido sul-africano e não fazem um apelo por um cessar-fogo, o principal objetivo da ação. O texto apenas pede garantias de que a população palestina tenha seus direitos e serviços respeitados.

A decisão foi anunciada nesta sexta-feira, na forma de medidas emergenciais tomadas pelos juízes do tribunal. Os juízes também pedem que o Hamas libere os reféns israelenses e insistem que todos devem estar submetidos ao direito internacional.

 

Eis as principais conclusões da corte: 

•  Israel deve tomar medidas imediatas e eficazes para permitir o fornecimento de serviços básicos urgentemente necessários e assistência humanitária na Faixa de Gaza.

•  Israel deve tomar medidas para prevenir e punir o incitamento direto ao genocídio na Faixa de Gaza.

•  Israel deve informar ao tribunal, no prazo de um mês, o que está fazendo para cumprir a ordem de tomar todas as medidas ao seu alcance para evitar atos de genocídio em Gaza.

•  A decisão cria obrigações legais internacionais para Israel.

•  Israel deve garantir, imediatamente, que seus militares não cometam nenhum ato descrito como genocídio.

  Israel deve tomar medidas efetivas para prevenir a destruição e garantir a preservação de evidências relacionadas à atos de genocídio contra palestinos em Gaza.

Israel ainda fica proibido de causar danos corporais ou mentais graves aos membros do grupo sob ameaça, incluindo:

•  matar membros do grupo;

  infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física

•  infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial; e

•  impor medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo.

Composta por 17 membros, a corte registrou dissidências entre os juízes. Mas a grande maioria votou por ordenar Israel a agir conforme o direito internacional.

Ainda que um cessar-fogo não tenha sido pedido, a decisão da corte foi recebida por diplomatas e advogados como um sinal de que a corte considera que existe base para temer um genocídio e que uma proteção é urgente. Para uma parcela dos observadores internacionais, trata-se de uma derrota para a versão adotada por governos europeus, americano e de Israel de que não existe risco de genocídio.

Mas não deixou de ser considerado como “decepcionante” por parte de aliados palestinos o fato de que um cessar-fogo não tenha sido solicitado.

 

Reações de Netanyahu e Hamas

Em uma declaração, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse que seu governo “continuará a fazer tudo o que for necessário” para se defender.

Já o Ministério de Relações Exteriores da Autoridade Palestina apontou que a decisão é um alerta de que “ninguém está acima da lei”. “A Palestina saúda as medidas provisórias ordenadas hoje pela Corte Internacional de Justiça”, afirmou o chefe da chancelaria, Ryad Al Maliki. “Os juízes da CIJ avaliaram os fatos e a lei. Eles decidiram em favor da humanidade e do direito internacional”, disse.

“Pedimos a todos os Estados que garantam que todas as medidas provisórias ordenadas pela Corte sejam implementadas, inclusive por Israel, a potência ocupante. Essa é uma obrigação legal vinculante”, afirmou.

Segundo ele, os Estados “agora têm obrigações legais claras para interromper a guerra genocida de Israel contra o povo palestino em Gaza e para garantir que não sejam cúmplices”.

“A ordem da CIJ é um importante lembrete de que nenhum Estado está acima da lei. Ela deve servir como um alerta para Israel e para os atores que permitiram sua impunidade arraigada”, afirmou.

Para o governo sul-africano, trata-se de uma “vitória decisiva” para o estado de direito internacional. Eles, agora, esperam “sinceramente que Israel não atue para frustrar a aplicação das ordens do tribunal”. A decisão ainda “representa um marco significativo na busca por justiça para o povo palestino”.

Sami Abu Zuhri, representante do Hamas, comemorou a decisão da corte, indicando que a ordem dada por uma juíza americana que presidia o tribunal era um sinal do “isolamento” de Israel. Ele apela, agora, para que Israel cumpra a decisão.

 

Corte rejeitou tese de Israel

Como era previsto, a corte não entrou no mérito da acusação sul-africana, que aponta a existência de um genocídio sendo causado pelas ações israelenses contra a população palestina. Isso pode levar meses ou até anos para que os juízes se pronunciem.

O conflito começou no dia 7 de outubro, depois que o Hamas perpetrou um ataque contra civis israelenses e deixou mais de 1,2 mil mortos. A resposta de Israel tem sido, porém, denunciada por entidades internacionais por sua brutalidade e por ignorar a população civis palestina.

De acordo com as medidas cautelares emitidas pela Corte, Israel precisa tomar todas as medidas para impedir que as operações militares representem uma ameaça existencial aos palestinos. Um dos juízes em Haia é o brasileiro Leonardo Nemer Caldeira Brant, que votou a favor das medidas cautelares.

Ao ler a decisão, Joan Donoghue, juíza americana e que preside a corte, afirmou que “alguns atos” denunciados pelos sul-africanos podem entrar nas provisões da Convenção contra o Genocídio e, portanto, o tribunal tem a jurisdição para lidar com o caso.

De acordo com a juíza, portanto, a corte não poderia aceitar o pedido de Israel para rejeitar o caso.

De acordo com a juíza, a guerra resultou em mortes, deslocamento de pessoas e destruição de casas. Ainda que reconheça que números de vítimas não podem ser verificados de forma independente, ela alerta que mais de 25 mil morreram e 1,7 milhão de pessoas foram deslocadas.

A corte ainda usa declarações da ONU, como a de Gaza é região de “morte e desespero” e “inabitável”. Ela ainda cita a constatação da OMS que aponta que 93% dos palestinos vivem fome ou desnutrição. Donoghue, porém, fez questão de apontar como as declarações de autoridades israelenses adotaram retórica que visava a desumanização dos palestinos, sem distinção entre o Hamas e a população local.

O centro da decisão, portanto, era se existia um “risco de dano irreparável” à população palestina. Na avaliação da corte, portanto, há a necessidade de que os direitos dos palestinos de serem protegidos contra um genocídio sejam preservados.

Segundo a juíza, a “situação catastrófica corre o risco de piorar ainda mais antes de julgamento final” por parte da Corte. “Há, portanto, a urgência de risco de que danos irreparáveis vão ocorrer”, afirmou.

 

Incitamento ao genocídio

Outra decisão da Corte foi a de que Israel interrompa qualquer tipo de incitamento ao genocídio. Durante a leitura da ordem, a juíza americana apresentou exemplos de declarações de lideranças israelenses que poderiam significar um ato neste sentido, inclusive por ministros e pelo presidente do país.

Para o governo da África do Sul, as medidas provisórias iriam “proteger contra danos adicionais, graves e irreparáveis aos direitos do povo palestino nos termos da Convenção sobre Genocídio” e “para garantir o cumprimento por Israel de suas obrigações nos termos da Convenção sobre Genocídio de não se envolver em genocídio e de prevenir e punir o genocídio”.

A avaliação sobre o possível genocídio cometido por Israel levará ainda meses – ou até anos – para ser julgada.

A corte, porém, não tem meios de implementar sua decisão. Nas primeiras semanas da guerra na Ucrânia, medidas provisórias também foram estabelecidas pelo órgão, exigindo que os russos se retirassem imediatamente do território invadido. O Kremlin ignorou a corte.

Ainda assim, a decisão será usado politicamente por governos para pressionar Israel e seus aliados a frear as ações em Gaza. A esperança, agora, é de que as medidas cautelares impostas pela Corte criem uma pressão diplomática sobre o governo de Benjamin Netanyahu, que ignorou todas as resoluções da ONU que também pediam um cessar-fogo.

Nos bastidores, a estratégia é a de estabelecer uma situação na qual ficará cada vez mais insustentável a continuação dos ataques, obrigando ambos os lados – o Hamas e Israel – a aceitar uma negociação.

 

Brasil queria anúncio de cessar-fogo

A busca por um cessar-fogo foi o que levou o governo brasileiro a apoiar politicamente a ação sul-africana na Corte em Haia. Num recente discurso no Conselho de Segurança da ONU, o embaixador brasileiro, Sergio Danese, explicou:

“As medidas provisórias solicitadas pela África do Sul à Corte Internacional de Justiça, com o objetivo de evitar o risco de genocídio, exigindo “a suspensão imediata das operações militares em Gaza e contra Gaza”, são muito urgentes e necessárias”.

Segundo ele, “o pronunciamento solicitado pelo principal órgão judicial da ONU não só pode possibilitar a ajuda humanitária necessária e salvar vidas civis, mas também pode contribuir para a criação de um ambiente propício para a restauração do diálogo político e para a retomada das negociações visando à solução de dois Estados”.

Para Danese, o pedido de cessar-fogo em Gaza não aborda as causas fundamentais do conflito, o que é necessário para uma paz duradoura na região. “No entanto, um cessar-fogo agora é possivelmente a única alternativa que pode preservar a capacidade da comunidade internacional de fazer isso depois”, explicou.

 

O que diz a queixa

No final de 2023, o principal órgão judicial das Nações Unidas foi acionado diante das “supostas violações por parte de Israel de suas obrigações segundo a Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio em relação aos palestinos na Faixa de Gaza”.

Há um mal-estar entre uma parcela da comunidade internacional que lembra que, semanas depois a invasão russa sobre a Ucrânia, o mesmo tribunal agiu, abriu um processo e determinou medidas provisórias contra Moscou.

O Tribunal Penal Internacional, que também fica em Haia, já está investigando possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos tanto pelo Hamas quanto por Israel. Mas sem qualquer ação, até o momento. O silêncio das cortes internacionais diante da morte de milhares de pessoas em Gaza, portanto, tem sido alvo de críticas.

Agora, de acordo com o requerimento sul-africano, “os atos e omissões de Israel têm caráter genocida, pois foram cometidos com a intenção específica necessária para destruir os palestinos em Gaza como parte do grupo nacional, racial e étnico palestino mais amplo”.

O documento ainda afirma que “a conduta de Israel – por meio de seus órgãos estatais, agentes estatais e outras pessoas e entidades que agem sob suas instruções ou sob sua direção, controle ou influência – em relação aos palestinos em Gaza, viola suas obrigações nos termos da Convenção sobre Genocídio”.

Os sul-africanos ainda afirmam que “Israel, desde 7 de outubro de 2023 em particular, não conseguiu evitar o genocídio e não processou o incitamento direto e público ao genocídio” e que “Israel se envolveu, está se envolvendo e corre o risco de se envolver ainda mais em atos genocidas contra o povo palestino em Gaza”.

A África do Sul busca fundamentar a jurisdição da Corte no Artigo 36, parágrafo 1, do Estatuto da Corte e no Artigo IX da Convenção sobre Genocídio, da qual tanto a África do Sul quanto Israel são partes.

Em 11 de janeiro, a África do Sul apresentou seus argumentos à corte. Para o embaixador Vusimuzi Madonsela, Israel cometeu “atos genocidas” e fazem “parte de uma série de atos ilegais” perpetrados contra o povo palestino desde 1948.

Ronald Lamola, ministro da justiça da África do Sul, argumentou que o caso apresentava ao tribunal uma oportunidade de agir em tempo real para evitar que o que ele chamou de genocídio continuasse em Gaza.

Para o advogado Tembeka Ngcukaitobi,”os líderes políticos, comandantes militares e pessoas que ocupam cargos oficiais de Israel declararam sistematicamente e em termos explícitos sua intenção genocida”.

 

O que argumenta Israel

Ao se defender diante da corte, no dia 12 de janeiro, o governo de Israel tentou inverter a acusação, apontando que havia uma relação de apoio ao Hamas na queixa sul-africana.

Tal Becker, consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel, afirmou que a África do Sul mantinha laços estreitos com o Hamas e que havia “ignorado” os eventos de 7 de outubro em seus argumentos orais.

Galit Raguan, diretor interino da divisão de justiça internacional do Ministério da Justiça de Israel, culpou o Hamas pelo alto número de civis em Gaza.

Outro argumento usado por Israel é de que o governo estava agindo para facilitar a ajuda humanitária.

Gilad Noam, procurador-geral adjunto de Israel para assuntos internacionais, opôs-se à introdução de medidas provisórias, listando vários motivos, inclusive o fato de o Hamas ser considerado uma organização “terrorista” por Israel e outros países e ter cometido “um ataque terrorista em grande escala”.

 

Por Jamil Chade/UOL
Foto: Eva Plevier/Reuters