Há quem chame de ruína, onde só restam cerca de 480 habitantes. Há quem bata o olho e associe à peruana Machu Picchu.
Outros preferem beber na memória dos tempos antigos da economia que girava em torno do diamante, para ressaltar as qualidades deste povoado encravado entre cidades mais conhecidas da Chapada Diamantina.
Seja por uma questão ou outra, Igatu, um distrito talhado em pedras do município de Andaraí, a 433 km de Salvador (BA), não passa ilesa à curiosidade. Parece um universo paralelo e pitoresco, com regras arquitetônicas e sociais únicas.
Para entendê-la é preciso desfrutar do silêncio enquanto se caminha em busca de respostas. As ruínas aqui são pistas para a construção do futuro.
O pequeno povoado tem cinco ruas principais, fáceis de serem percorridas. Afastando-se do centro, estão as ruínas do antigo bairro de Luís dos Santos, ladeadas de eucaliptos cheios de “barba de velho”, uma espécie de planta que fica sobre os galhos, pendurados e parecendo mesmo fios de barba.
No caminho, a arquitetura em pedra vai se revelando no cemitério e na Igreja de São Sebastião, padroeiro da vila. Durante muito tempo, morrer e ser enterrado o mais próximo do altar da Igreja era sinônimo de prestígio em Igatu.
Seguindo pela descida, é onde está parte do conjunto arquitetônico tombado pelo Iphan, que delimita o bairro Luís dos Santos, local onde viviam os garimpeiros, com moradias ao longo de toda a serra e algumas casas lado a lado.
Em diversos momentos, avistamos o rio Paraguaçu e uma sequência de serras escondendo o horizonte azul. Na entrada, há casas em quase perfeito estado, onde ainda resistem os encaixes das pedras e as divisões dos cômodos. Outras residências já foram tomadas por árvores em seus interiores, criando cenários míticos.
Em determinado trecho, o caminho se alarga e surgem casas em ambos os lados. Ali era conhecido como uma parada para o descanso na estrada dos tropeiros, caminho tradicional para o transporte de mercadorias através de animais pela Chapada Diamantina, parte de uma estrada que liga Mucugê a Lençóis.
O passeio depende da disposição de quem caminha. Descendo há ainda antigos pontos do garimpo ao longo da serra: Bicano, Califórnia e Raposo. Hoje, são pontos turísticos e intervalos na caminhada para quem ainda tem fôlego de chegar até o mais distante deles, o Raposo.
Para quem prefere um banho de cachoeira, a Califórnia é a parada certa. O acesso é difícil, mas ao chegar o banho é revigorante. Ao final, está a estrada para a cidade de Andaraí.
Iguatu começou a tomar forma em 1844, quando os primeiros diamantes foram encontrados no leito do Rio Cumbucas, trazendo levas de garimpeiros à Chapada Diamantina.
Nos tempos áureos do povoado, isto é, no século 19, chegou a ter quase 10 mil habitantes. Pessoas estas vindas para extrair o ouro, o diamante e o carbonato.
Milhares que, ao ir embora depois de esvaziar jazidas e encher os bolsos, deixaram os efeitos visíveis até hoje da exploração da mineração, muitos descendentes e um rastro de pedras desarrumadas.
É justamente a arquitetura dessas ruínas, casas e tocas feitas de rocha que confere ao local o charme de uma cidade suspensa no tempo. Por onde você caminha, encontra casinhas feitas como cabanas de árvore, equilibradas entre a paisagem da serra e a vegetação.
Algumas delas parecem se esconder, outras saltam do penhasco. São casas que praticam uma espécie de simbiose com as formações rochosas de geografia de Igatu. Um pacto que oscila no equilíbrio entre a sofisticação e a necessidade.
Para chegar em Igatu é preciso subir a Serra do Sincorá e tomar uma estrada com calçamento em pedras, que aos poucos vai descortinando uma sequência de ruínas e escombros deixados pelo garimpo.
É necessário um olhar atento, parte desses emaranhados de rochas foi ou permanece sendo casa. É que a pedra era o refugo da mineração e, portanto, usada como matéria-prima para construir as chamadas “tocas”, que aproveitam a geografia local com grandes rochas associadas a pedras menores.
Estas eram cuidadosamente equilibradas, dando forma a janelas e portas, para servir de moradia aos garimpeiros. Uma solução espontânea para dar vazão ao material e, ao mesmo tempo, garantir a habitabilidade dos exploradores, que ultrapassou os tempos e ainda inquieta por permanecer sendo moradia.
Dona Maria de Lourdes Oliveira, de 50 anos, não vive em uma toca, mas se aproveitou dos resquícios pedregosos do garimpo para erguer um lar. A casa dela é um exemplo da rápida conexão entre passado e presente apresentada aos visitantes a cada caminhar no povoado. “Meu avô era escravo e quando chegou aqui achou uma toca e fez a casinha dele”, conta.
Dentro da gruta, nessa casa pequena de um cômodo só, Lourdes se criou com mais 11 pessoas. Com passar do tempo e muito esforço, ela fez o mesmo que muitos outros moradores de Igatu: adicionou concreto as paredes de pedra para dar ares de modernidade e maior conforto ao espaço.
Lourdes e os filhos trabalham com artesanato, fruto da renovação turística de Igatu após a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, em 1985, e em seguida nos anos 2000, quando o conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico do povoado foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPhan).
Ela trabalha com a estopa para fazer cortinas, panos de mesa e jogos americanos. Tem uma irmã dedicada a vender café da manhã para os visitantes e outra costurando fuxico para abastecer o turismo.
Durante a pandemia, Lourdes viu Igatu viver o apogeu e depois decadência, com a chegada de muitos turistas e, logo em seguida, o esvaziamento pelas paralisações de todos os serviços.
O negócio de Lourdes orbita em torno da preservação da memória de Igatu, como o do artista visual Marcos Zacaríades, um homem que elegeu Igatu como moradia há duas décadas. Lá, criou a Galeria Arte & Memória, um museu a céu aberto capaz de nos levar de volta a antiga Igatu.
A galeria tem diversos itens relacionados ao garimpo de diamantes e pequenos achados arqueológicos da sociedade daquela época. Marcos é um dos moradores responsáveis e mais empenhados em preservar, pela memória e o coração, o patrimônio da cidade de pedra.
O artista fez um levantamento das tocas, das ruínas garimpeiras, fotografou os espaços e montou um inventário fotográfico e iconográfico. Visitar sua galeria é mergulhar na magia do povoado.
Sair da pequena Iguatu não é o desejo de Lourdes nem de Marcos, mas é um sonho antigo de um dos moradores mais ilustres do povoado, Amarildo dos Santos, 57 anos.
Filho de Guina, dono do bar Igatu, point da praça, Amarildo mantém por conta própria um censo da cidade. Conta todos os habitantes, naturais e naturalizados, atualiza a lista de nascimentos e óbitos a cada novo amanhecer e transforma tudo em livros, prontos para serem adquiridos no comércio mantido por ele na sala de casa.
Se Marcos preserva a memória material, Amarildo mantém viva a essência do lugar. Na casa dele, um fã incondicional de Xuxa e Roberto Carlos, não faltam histórias.
Mesmo com tanto esmero em preservar a memória do distrito, para ele aquilo é um fim de mundo.
Mesmo assim, durante a pandemia, ele aproveitou o dinheiro do auxílio emergencial para reformar, depois de 17 anos, a casa onde vive. Primeiro construiu uma parede para dividir o único cômodo em dois. Depois, subiu três quartos no quintal.
É assim que a cidade de pedras Igatu vai se recriando em novas formas. As tocas hoje dividem espaço com as construções mistas e aquelas totalmente em alvenaria.
A situação, cada vez mais comum, por um lado permite a permanência dos resistentes em trocar o local pelos centros mais urbanizados. Por outro, descaracteriza o charme que fez alguns artistas e curadores de arte escolherem o Igatu como moradia. O medo agora é a corda arrebentar em prol do novo e fazer a cidade de pedras, enfim, virar uma cidade perdida, tal qual a irmã peruana mais famosa.
Fonte: UOL
Foto: Rafael Martins
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