Sem melhoras nos índices econômicos, o presidente argentino Javier Milei deve ter mais dificuldades para aprovar seus projetos. Após o revés na votação sobre os artigos da “lei ônibus” o Congresso, aliados já falam em realizar plebiscitos para avançar com as reformas.

Ontem, o Instituto Nacional de Estatística e Censo da Argentina (Indec) divulgou a inflação da Argentina.

Em janeiro, o país registrou 20,6% de inflação, menor do que a registrada em dezembro de 2023 (que fechou em 25,5%).

Já a inflação no acumulado de 12 meses bateu recorde histórico e saiu de 211,4% para 254,2%, a maior em mais de 30 anos.

De acordo com o Indec, o que mais subiu no mês passado foram os serviços (44% de aumento), seguidos de transporte (26,3%) e alimentos (20,4%) — com destaque para carne, derivados e pão.

O reajuste no transporte público veio depois do chamado megadecreto, o DNU (Decreto de Necessidade e Urgência), vigente desde 29 de dezembro. O texto determina, entre outros itens, a retirada de subsídios concedidos a transportes, luz e gás. Também revoga leis e libera os preços de produtos e serviços.

O DNU também determinava reforma nas relações de trabalho, mas esse trecho foi suspenso por determinação da Justiça — que entendeu que as mudanças no mundo do trabalho são atribuições do Legislativo e não do presidente.

A passagem de ônibus em Buenos Aires, um das mais econômicas das províncias do país, passou de 76 pesos para 270 pesos. A de trem, de 48 pesos para 130 pesos. O governo anunciou que os argentinos que necessitam serão contemplados com desconto.

Já o metrô, que é administrado pelo município de Buenos Aires, subiu de 100 a 125 pesos.

Na Argentina, o salário mínimo gira em torno de 155 mil pesos. Em abril, haverá novo aumento no transporte público, informou o governo.

 

Convênios médicos aumentaram 70% desde dezembro

Para a classe média, o impacto também se configura no aumento das pré-pagas — como são chamados os convênios médicos —, que desde a liberação dos preços pelo DNU, em dezembro de 2023, subiram 70%.

Muitos argentinos, como é o caso do professor Juan Manuel, 43, pensam em deixar de contratar esse serviço ou buscar um convênio mais barato.

“Ainda estou avaliando, porque, infelizmente, ficamos nas mãos da saúde privada. Mas os aumentos estão acima do que a maioria pode manter.”

O economista Guido Zack, do instituto de economia e políticas públicas Fundar, defende que quando o Estado retira os subsídios, também fomenta o processo inflacionário. Para ele, o aumento da medicina privada vai impactar o sistema público.

“A magnitude do aumento está muito acima da inflação e tem um efeito muito forte no bolso dos argentinos. Muita gente vai passar a usar o sistema de saúde público, num momento em que há redução de investimento na saúde, o que pode colapsar os hospitais.”

Um homem verifica os preços em um supermercado em Buenos Aires: inflação anual bateu recorde no país
Um homem verifica os preços em um supermercado em Buenos Aires: inflação anual bateu recorde no país – Foto: Agustin Marcarian/Reuters

 

Milei já falou sobre plebiscito para reformas

Depois de aliados interromperem, na semana passada, a votação dos artigos particulares do megaprojeto de lei — conhecido como lei ônibus —, Milei cogita fazer uma consulta popular para tentar confirmar a sua tese de que tem o apoio dos argentinos sobre as reformas e o reajuste que quer implantar.

Na discussão no Congresso, os governistas conseguiram apoio necessário para itens caros ao presidente.

O governo afirma que mesmo sem a aprovação a Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos aprovada, manterá o programa político — com ou sem apoio dos parlamentares.

O deputado Gerardo Milman, do PRO, bloco político de Maurício Macri — que apoia Milei —, apresentou um projeto de lei para convocar uma consulta popular sobre o projeto.

O ministro do Interior, Guillermo Francos, chegou a dizer à TV que se o presidente “tiver que recorrer a consultas populares, vai fazer também”.

O próprio presidente, logo que assumiu em dezembro, afirmou em entrevista à imprensa argentina que convocaria plebiscitos se não tivesse apoio do Congresso.

Milei venceu as eleições no segundo turno, em novembro de 2023, quando recebeu 55% dos votos, após fazer aliança com partidos de oposição ao peronismo — como foi o Juntos pela Mudança, partido da atual ministra de segurança Patricia Bullrich, que disputou as eleições gerais e ficou em terceiro lugar.

Mas o cálculo é que menos de 30% dos eleitores são “mais fiéis” a Milei — é a proporção de votos que ele recebeu no primeiro turno.

O cientista político argentino Sergio Morresi, investigador do Conicet (Centro Nacional de Investigações Cientistas e Técnicas) pondera que nem mesmo essa fatia do eleitorado aprova todo o programa de Milei — mas, por enquanto, não deve abandoná-lo.

“Seus eleitores tiveram distintos motivos para apoiá-lo, desde suas ideias econômicas ao seu rechaço ao feminismo, mas isso não quer dizer que tenha uma parte importante dos argentinos que apoiem as duas coisas. Por outro lado, parte do Juntos pela Mudança que apoiou Milei é muito ideológico em seu antiperonismo, por isso não vão abandonar Milei facilmente.”

Para o analista, além dos liberais, o presidente representa o antiperonismo, segue tendo respaldo popular — e assim seguirá. “Eu avalio que quem votou em Milei só vai deixar de apoiar o seu governo se a economia não melhorar.”

Ontem, a ex-presidente Cristina Kirchner publicou em uma rede social documento com 33 páginas com fortes críticas ao governo de Milei e ao ministro da Economia, Luis Caputo. Ela diz que Caputo é um dos responsáveis pela dívida bilionária da Argentina com o FMI, adquirida no governo de Macri (2015-2019) quando Caputo. Imediatamente, Caputto respondeu — afirmando que ela deveria ficar calada.

 

O que diz a Constituição sobre plebiscito

Um plebiscito é uma consulta direta da população sobre temas de relevância nacional. A Constituição argentina estabelece que tanto o presidente como o Congresso podem convocar a consulta popular.

Na Argentina, as consultas podem ser não vinculantes — ou seja, os resultados não obrigam as autoridades a seguir a vontade popular.

Já as vinculantes transformam diretamente um projeto de lei em normativa, se obter os votos da maioria da população. Mas, para isso, a Câmara dos Deputados deve apresentar o projeto de lei ante o voto popular.

Ou seja, enquanto o plebiscito não vinculante é mais simbólico para “medir a temperatura” da opinião pública, o segundo, sim, se transformaria em lei.

Nos dois casos, são os legisladores que precisam aprovar a permissão para a consulta popular.

Os plebiscitos não vinculantes não são obrigatórios e podem ser convocados pelo presidente ou pelo Congresso. Já nos plebiscitos vinculantes, quem convoca é o Congresso, o voto é obrigatório e não há veto do presidente.

 

Por Amanda Cotim/UOL
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